sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Perda.

Tenho certeza que Rebecca* gostaria de dizer que estava naquele carro para um viajem divertida com a sua mãe, mas a tensão que ali havia discordava dessa alternativa.
Se você prestasse bastante atenção o único som que se ouvia era o ronronar baixo do motor e o atrito dos pneus com a estrada.
Rebecca* lançava olhares discretos para sua mãe. Machucava ver a expressão de ausência e dor no rosto dela, então ela encarava seu reflexo na janela, olhando as imagens que passavam como um borrão pelo carro.
Por que ela não chorava? Por que ela não estava se retorcendo de dor e dizendo o quão injusto o mundo foi? Havia algo de errado com ela?
Não, não havia nada de errado com ela. Ela simplesmente ainda não tinha caído em si, a realidade para ela ainda estava oculta, ela achava que era uma brincadeira de mal gosto, e que a qualquer momento alguém pularia na sua frente gritando:

- É brincadeirinha!

Mas uma parte dela sabia que isso não iria acontecer. Ela trouxe as pernas em cima do banco junto ao seu corpo, para evitar que um buraco se abrisse a qualquer momento. Ela devia apoiar sua mãe nesse momento, passar alguma energia positiva, se ela tivesse.
Ela fungou olhando para o vazio, tentando lembrar de coisas divertidas, coisas boas, coisas que pudessem completar ela de alguma maneira.
Para ela ele não havia ido embora completamente, ele só estava em mais uma de suas viajens e logo chegaria em casa com um sorriso preso nos lábios e com os braços aberto falando:

- Onde estão as duas mulheres mais lindas da minha vida?

Mesmo ela lembrando desses momentos, a lembrança que mais marcava, e que insistia em se fazer sólida em sua cabeça, era daquele dia...

" Um fim de tarde típico de primaveira, ele empurrava ela delicadamente no balanço, tratando ela como uma criançinha mimada, mesmo ela tendo completo 16 anos. Todo dia ele a pegava no colo e a girava, chamando ela de minha menininha. Ela sorria só de lembrar.
Ela pendeu a cabeça para trás para poder ver ele, ele sorria para ela, e ela retribuia. Então ele se sentou no balanço ao seu lado.
Passou a mão na testa num gesto cansado e tirou os óculos. Ela o olhou por um minuto, se prendendo em todos os detalhes. Seu cabelos grisalhos arrumados e seu ar de intelectual, seus olhos com as três cores misturadas estavam sem brilho e ele respirava pesadamente.
Ele abriu um sorriso como o de alguém que se desculpava por ter que partir.
- O que foi pai?
Ele passou novamente a mão na testa limpando as gotículas de suor que por ali se encontravam.
- Nada minha menina, eu só queria te dizer algumas palavras, não tenho muito tempo...
Ela o interrompeu com uma voz alarmada.
- Claro que você tem! Não fale bobagens, você ainda vai viver muito!
Ele riu do tom afobado que ela tinha na voz, e balançou a cabeça negativamente, tentando passar um pouco de calma.
- Não estava me referindo a isso minha menina, estava me referindo ao fim da tarde, daqui a pouco temos que ir pra casa...
Ele olhou pro horizonte que possuía uma cor alaranjada, ela seguiu seu olhar, sabendo que não era aquilo que ele queria dizer, mas resolveu não dizer nada, a realidade era cruel demais.
Ela mordeu o lábio tentando conter a agonia dentro de si. De ver seu pai tão cansado, tão derrotado e doente.
Ele havia lutado o quanto podia, e ela o havia acompanhado com uma fé inabalável, mas não foi o bastante, o cancêr o corroia.
Ele respirou fundo, e a encarou.
- A vida é curta demais pra se preocupar com coisas passageiras, então tire um tempo para apreciar, menininha. Eu amo você.
Ela se levantou lentamente do balanço e puxou a mão do pai para abraça-lo com toda força que ela tinha, sussurrando contra o blusão azul e gasto preferido dele que ele sempre usava.
- Também te amo, pai."

Mal ela sabia que na noite daquele dia típico de primavera, ele não estaria mais com ela e com sua mãe.
Uma dor aguda atingiu seu estômago já irritado, ela fungou novamente.
Trouxe o blusão que ela usava até seus lábios para depositar um beijo, e depois respirou fundo, sentindo a fragrância de seu pai que ainda estava impregnada no blusão azul que agora a pertencia. Um cheiro cítrico, meio amadeirado a invadiu, fazendo a saudades e o sentimento de compreensão que antes ela não tinha, vierem a tona.
Um nó enorme se abriu em sua garganta, ela queria gritar. Algumas lágrimas percorreram seu rosto sem nenhum esforço, sem nem mesmo piscar.
E ela continuou firme e forte, encarando as árvores lá fora.
Então sua mãe pigarreou, trazendo sua atenção de volta.

- Esta com fome?

Era tão bom ouvir novamente a voz de sua mãe. Elas não se falavam direito a dias, a dor reinava e fazia do silêncio uma companhia frequente. Sua mãe teve de viajar para cuidar do velório. Rebecca preferiu não ir, não queria lembrar de um pai frio e sem expressões. Ela sorriu.

- Estou se você estiver, mãe.

Sua mãe acompanhou seu sorriso, inclinou seu corpo por cima do banco sem tirar o olhos da estrada para depositar um beijo na testa de Rebecca. E ela pode entender a dor de sua mãe, que havia perdido seu grande e único amor, sua felicidade, seu companheiro. Ela devia estar se remoendo por dentro.
Naquele momento Rebecca jurou para si, que faria sua mãe conhecer a felicidade novamente, que seria forte pelas duas. Por que algo dentro dela dizia que seu pai sempre estaria acompanhando elas, que a felicidade das duas era seu maior e último desejo. As duas juntas, poderiam fechar o buraco da perda, sempre lembrando ternamente do jeito dele e se aconchegar nisso. Talvez a mudança de ares ajudasse nisso, era o que ela esperava.
Era o real motivo de estar dentro daquele carro.